O FUTURO DO DÓLAR

O FUTURO DO DÓLAR

Procuro evitar escrever sobre moedas. Não porque as ache desinteressantes, mas porque a maioria das discussões sobre moedas inevitavelmente envolve adotar uma posição sobre a direção que tomarão. Qualquer pessoa familiarizada com modelos de taxa de câmbio ou com o histórico dos analistas profissionais sabe que isso é uma tarefa inglória. No entanto, estamos em um momento da história do sistema financeiro internacional em que a discussão sobre o futuro do dólar não pode ser evitada.

Nas últimas semanas, ouvimos vários comentários de autoridades da administração Trump sugerindo que o papel futuro do dólar está entre suas maiores preocupações. Isso inclui declarações do Secretário do Tesouro, Bessent, como "o uso excessivo de sanções pode afetar a supremacia do dólar americano", e também que "vamos manter os EUA como a principal moeda de reserva do mundo, e usaremos stablecoins para isso". Por sua vez, o presidente Trump assinou uma ordem criando uma reserva estratégica de criptomoedas e nomeou David Sacks como "czar das criptomoedas". De forma significativa, Trump também nomeou Stephen Miran como novo presidente do Conselho de Assessores Econômicos. Miran publicou trabalhos apontando os custos do papel atual do dólar para a economia dos EUA, e defendeu a ideia de um acordo "Mar-a-Lago" para ajudar a desvalorizar o dólar.

Por que tudo isso está acontecendo?

Nos últimos anos, houve uma proliferação de pesquisas sobre a criação de moedas digitais de bancos centrais (CBDCs), inspiradas em parte pelo crescimento dos criptoativos. O objetivo das CBDCs é lançar uma forma de dinheiro que possa reduzir os custos de transação. O Banco de Compensações Internacionais (BIS) também tem coordenado pesquisas entre bancos centrais com dois objetivos: interconectar sistemas de pagamento domésticos em escala global (Projeto Nexus) e explorar a viabilidade de pagamentos internacionais tokenizados (Projeto Agora). Existe um consenso de que a tecnologia que sustenta o sistema financeiro internacional precisa ser atualizada.

Ao mesmo tempo, o uso de sanções aumentou de fato os custos das transações internacionais feitas em dólar. Em especial, o uso de sanções secundárias contra instituições financeiras para forçar o cumprimento de sanções primárias adiciona ainda mais custos. Para muitos participantes, o custo de utilizar sistemas como o SWIFT é bem mais alto do que o valor econômico real que eles entregam.

Alguns países – particularmente os "BRICS" – estão questionando o papel do dólar, enquanto o presidente Trump os ameaçou com tarifas de 100% se "quiserem brincar com o dólar". Com as mudanças tecnológicas afetando a infraestrutura do sistema financeiro internacional, não é surpresa que a preeminência do dólar esteja sendo questionada.

O duplo papel do dólar

Uma moeda de reserva internacional precisa cumprir várias condições, mas no essencial, isso se resume a duas principais: ela deve ser uma reserva de valor estável e um meio de troca amplamente aceito. Para o primeiro ponto, a moeda deve ter baixa inflação; para o segundo, deve ter ampla liquidez e ser facilmente conversível para outras moedas a um custo baixo. O dólar tem cumprido ambos os papéis com sucesso inédito desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Como o dólar se tornou o centro do sistema financeiro internacional?

Ao longo da história, várias moedas assumiram papéis de destaque nas finanças globais. O dólar americano consolidou essa posição após a Segunda Guerra Mundial, quando as economias do mundo livre estavam devastadas. Com os EUA como única grande economia intacta, o acordo de Bretton Woods foi criado para ajudar na reconstrução do pós-guerra e servir de âncora para as moedas.

O acordo de Bretton Woods estipulava que todas as moedas seriam atreladas ao dólar, e o FMI foi criado para ajudar os países a manterem esses vínculos, desde que a taxa de câmbio fosse compatível com seus fundamentos econômicos. Se não fosse, o FMI sugeriria reformas ou uma desvalorização em troca de apoio financeiro. Os EUA, por sua vez, se comprometeram a manter o dólar atrelado ao ouro.

Manter esse sistema de câmbio fixo exigia que os países ajustassem suas políticas monetárias e fiscais de acordo com a taxa de câmbio estabelecida. Na época, John Maynard Keynes propôs a criação de uma moeda internacional gerida pelo FMI – o Bancor – como eixo do sistema financeiro global. Mas os EUA rejeitaram a proposta, pois não queriam ver suas políticas limitadas por uma taxa de câmbio frente a outra moeda. O ouro foi escolhido simplesmente porque era um ativo historicamente valorizado e fácil de ser entendido pelo público.

O ouro, no entanto, sempre falhou como âncora monetária. Seu valor vem do fato de ser um metal desejado, mas não essencial, e escasso. Mas quando essa escassez se junta à demanda por ouro como reserva, o crescimento da oferta de ouro será menor do que o crescimento da produção de bens e serviços. Isso leva à deflação: com mais produtos e serviços e pouca expansão da base monetária, os preços tendem a cair. A deflação pode ser tão perigosa quanto a inflação. Se as pessoas esperam que os preços caiam, postergam compras, e isso pode gerar uma espiral negativa. Assim, os bancos centrais acabam emitindo moeda além de suas reservas em ouro – exatamente o que aconteceu.

Em 1971, o preço oficial de uma onça de ouro era de US$ 35, enquanto o preço de mercado era US$ 43. Não é surpresa que o presidente Nixon tenha encerrado a conversibilidade do dólar em ouro. Nunca foi economicamente viável que os EUA adotassem as políticas deflacionárias necessárias para manter esse vínculo. E, geopoliticamente, também era inaceitável manter um sistema onde o crescimento monetário do mundo livre dependia da mineração na União Soviética e na África do Sul do apartheid.

Por que o dólar continua sendo a âncora das finanças globais?

O colapso de Bretton Woods acabou com o papel legal do dólar. Desde os anos 1970, cada país pode escolher seu regime cambial, mas o dólar continuou sendo a âncora de fato. É a moeda mais usada para pagamentos, precificação do comércio internacional, reservas de câmbio e como referência para outros países que mantêm suas moedas atreladas. O sucesso contínuo do dólar é resultado das forças de mercado, não de um plano deliberado. Ele permanece a melhor reserva de valor e meio de troca por várias razões:

Primeiro, o dólar oferece alta conversibilidade. Os EUA não impõem controles de capital, exceto por um breve período nos anos 60. A maioria dos outros países mantinha controles rígidos. O Reino Unido só liberou os fluxos de capital em 1979. Holanda em 1986. Alemanha e França só o fizeram em 1988 e 1989. Mesmo hoje, países como China, Índia e Brasil – que mais criticam a dominância do dólar – não permitem conversibilidade total de suas moedas.

Segundo, pelo tamanho da economia americana, o dólar oferece mais liquidez em instrumentos de curto prazo do que qualquer outra moeda. A zona do euro, embora grande, tem um mercado de títulos soberanos fragmentado, sem a mesma liquidez com qualidade de crédito equivalente.

Terceiro, os EUA oferecem um sistema jurídico confiável e políticas econômicas previsíveis. Apesar de países europeus também oferecerem isso, o BCE é muito mais jovem que o Fed. E há pontos frágeis: em 2012, o parlamento grego alterou retroativamente os termos de seus títulos. Em 2013, Chipre impôs controles de capital mesmo fazendo parte da zona do euro.

Quais são os benefícios e custos de emitir uma moeda de reserva?

Valéry Giscard d’Estaing falou do “privilégio exorbitante” do dólar. Isso foi durante a era de Bretton Woods, mas os privilégios ainda existem hoje. Como o mundo precisa de reservas em dólar, os EUA conseguem financiar seus déficits fiscais e em conta corrente com taxas de juros mais baixas do que normalmente seriam exigidas. Além disso, como mostram os exemplos de sanções, o dólar é uma ferramenta de poder muito eficaz.

Pode-se argumentar que, como a demanda por dólares é maior do que o que seria justificado apenas pelos fluxos comerciais e oportunidades de investimento, o dólar tende a ficar sobrevalorizado, especialmente em tempos de incerteza global. Essa sobrevalorização é um dos focos da administração Trump. Eles alegam que ela levou à desindustrialização, tornando exportações caras e importações baratas. Outras administrações viram isso como positivo: ao manter as importações baratas, o dólar funcionou como um subsídio para os consumidores americanos.

Mas se existe uma sobrevalorização, qual é sua magnitude? O FMI estima que o papel do dólar explica um déficit em conta corrente de cerca de 2% do PIB. Déficits acima disso precisam ser explicados por outros fatores. Há um fundo de verdade nas críticas da administração Trump, mas o problema pode não ser tão grande quanto sugerido.

O impacto da mudança tecnológica

Há uma piada comum sobre o Bitcoin: é uma solução em busca de um problema. Isso é parcialmente verdade. O mundo não precisa de uma nova reserva de valor – e certamente não de uma que, como o ouro, baseia seu valor na escassez. Mas como meio de troca, o Bitcoin foi um “rascunho inicial” de uma tecnologia que pode revolucionar a infraestrutura do sistema financeiro global.

A tecnologia blockchain e seus desdobramentos permitiram que transações ocorressem sem um sistema central de compensação. Os pagamentos podem ser feitos de forma direta entre as partes. Isso abre caminho para um sistema de pagamentos internacionais mais eficiente e robusto.

Todos os principais bancos centrais têm pesquisado formas de oferecer suas moedas em formato digital. A China lidera o mundo na implementação de sua moeda digital, já usada em pagamentos internacionais com parceiros como a Rússia. Bancos centrais ao redor do mundo têm colaborado sob a liderança do BIS para conectar sistemas de pagamentos nacionais. A tecnologia para viabilizar pagamentos globais rápidos e de baixo custo já existe. Mas por que ainda não estamos usando moedas digitais amplamente?

A Caixa de Pandora das questões políticas

Entusiastas das moedas digitais tendem a se concentrar nos benefícios da tecnologia. Mas as questões políticas levantadas são profundas e longe de estar resolvidas.

Por natureza, moedas digitais são programáveis. Isso pode eliminar toda forma de privacidade. Mais preocupante ainda, essa programabilidade pode dar aos governos poderes impensáveis. É fácil imaginar um cenário onde um governo programe pagamentos digitais para impedir que beneficiários de assistência social apostem em jogos. Muitos eleitores aplaudiriam. Mas e se o governo proibir que esses mesmos beneficiários comprem tabaco? Ou limite o quanto uma pessoa pode gastar em álcool proporcional à sua renda? Por que não restringir o consumo de açúcar diretamente, em vez de regulamentar o conteúdo das bebidas?

A possibilidade de uma moeda programável colocou a privacidade e o anonimato no centro do debate sobre moedas digitais nos EUA e na Europa. As capacidades de vigilância digital da China aumentam essas preocupações. Por isso, congressistas republicanos propuseram proibir o uso da moeda digital chinesa nos EUA. Os testes do BCE com o euro digital têm focado em aspectos como pseudonimato e criptografia. A questão da privacidade é especialmente sensível na Alemanha. Marcados pelos horrores da era nazista, mais de 50% das transações no país ainda são feitas em dinheiro, comparado a 16% nos EUA e 12% no Reino Unido.

Contudo, como mostram as experiências com cartões de crédito, os consumidores não têm tanta resistência em compartilhar dados. Eles os entregam aos bancos e compartilham ainda mais nas redes sociais – mas dentro de um marco legal. Sabem que esses dados só serão acessados pelo governo com uma ordem judicial e que podem buscar reparação caso haja abuso. Há freios e contrapesos.

Se um governo emitir moeda digital, o que impediria o abuso desses dados? Como os cidadãos poderiam ter certeza de que ainda gozam do mesmo anonimato que têm ao gastar cédulas em espécie?

Moedas digitais também podem trazer riscos à estabilidade macroeconômica. Se as pessoas puderem guardar ativos digitais sem intermediários, o que acontece com o sistema financeiro se, durante uma crise, todos sacarem seus depósitos bancários de uma vez? Tivemos uma prévia com o colapso do Silicon Valley Bank em março de 2023, quando 25% dos depósitos foram retirados em um só dia. Nesse caso, o dinheiro foi para outros bancos. Mas e se não fosse?

Outro problema é como aplicar regras de KYC (conheça seu cliente), especialmente em sistemas que valorizam privacidade e criptografia. Em 2018, estudos mostraram que cerca de um quarto das transações com criptoativos eram ligadas a atividades ilícitas. Esse número caiu bastante, especialmente com a aprovação de ETFs de criptomoedas que aumentaram a participação de investidores convencionais. O volume absoluto de transações ilegais pode ter subido, mas sua fatia no total está diminuindo porque mais pessoas estão especulando que “o preço vai subir”.

Recentemente, o BCE testou a integração do sistema de pagamentos da zona do euro com o Buna, sistema criado pelo Fundo Monetário Árabe. Isso permite pagamentos diretos entre pessoas da Europa e países árabes. Mas o sistema ainda não está acessível ao público porque ninguém resolveu como fazer o KYC para novos usuários. Os governos seriam capazes de implantar processos de KYC para cidadãos usarem moedas digitais? Isso soa mais como um prenúncio distópico do que um avanço promissor.

O valor agregado das instituições financeiras

O surgimento do Bitcoin e ativos digitais semelhantes ocorreu em um momento de grande preocupação com a saúde do sistema financeiro global e desconfiança em relação aos bancos. Mas será que os clientes realmente querem abrir mão do sistema bancário como o conhecemos? Não estou convencido de que isso seja o que os consumidores realmente desejam, mesmo que muitos digam detestar os bancos.

Pagamentos diretos entre pessoas, sem custo, são altamente desejáveis – especialmente em transações internacionais. Contratos inteligentes e outras ferramentas são apresentados como formas de aumentar a confiança. Mas nada disso substitui o valor de um intermediário. Se estou comprando algo online, atualizo a página por engano e faço um pagamento duas vezes com meu cartão, sei que posso ligar para o banco e reverter a transação. O comerciante tem mais incentivo para cooperar com o provedor de pagamentos do que com um cliente que talvez nunca mais veja. Para a maioria das pessoas, é muito mais confortável lidar com o atendimento ao cliente de um banco do que confiar nas cláusulas de um contrato inteligente que elas não entendem completamente e que não cobre todas as possibilidades de erro.

Os consumidores também valorizam muito o pacote completo de serviços oferecido por seus bancos. Por exemplo, estudos mostram que muitos preferem acumular milhas com seus cartões – que valem entre 0,5% e 1% do valor gasto – a receber cashback superior a 1%. Quem já tentou achar um lugar vazio em uma sala VIP de aeroporto sabe o quanto as pessoas valorizam esse benefício do cartão de crédito.

Além disso, instituições financeiras oferecem serviços importantes como crédito e remuneração de depósitos. Embora haja inovações nessa área, o comportamento dos clientes mostra que os relacionamentos ainda importam muito. Nos EUA, 70% do crédito para empresas com menos de 100 funcionários vem de bancos locais ou regionais, não dos grandes bancos nacionais. Esses bancos, por conhecerem seus clientes, podem oferecer condições mais flexíveis e taxas melhores.

Empresas como a Klarna mostraram que é possível usar tecnologia de dados para conceder crédito em larga escala de forma competitiva. Mas ainda não vimos o impacto completo desse modelo ao longo de um ciclo econômico completo. E estamos longe de desenvolver tecnologias que ofereçam a flexibilidade que um relacionamento bancário proporciona.

O que tudo isso significa para o futuro do dólar como meio de pagamento?

Como tentei mostrar, vale a pena separar o papel do dólar como moeda de reserva do seu papel como motor do sistema de pagamentos internacionais. As declarações recentes da administração Trump tocam em ambos os pontos.

A tecnologia evoluiu de forma a reduzir a dependência de sistemas de pagamento construídos ao longo de décadas com base na compensação em dólar. Como essas novas tecnologias permitem transações mais baratas e rápidas, os EUA não podem simplesmente ficar para trás enquanto novos sistemas são desenvolvidos que, no futuro, poderão oferecer alternativas viáveis. O mesmo vale para a Europa, já que o euro é a segunda moeda de reserva global mais importante.

Mas, como vimos, EUA e Europa não podem avançar rapidamente nessa área. Não por comodismo, mas porque é muito mais difícil responder às questões que a tecnologia levanta em uma sociedade democrática do que em regimes autoritários como China ou Rússia. Há uma ironia amarga no fato de que uma inovação criada por idealistas para fugir do controle estatal pode acabar dando aos governos níveis inéditos de informação e controle.

O que o Secretário do Tesouro quis dizer ao afirmar que “vamos manter os EUA como a principal moeda de reserva do mundo e usaremos stablecoins para isso”? Ou quando Trump diz que tornará os EUA a “capital cripto do mundo”?

Stablecoins são ativos digitais privados com valor atrelado ao dólar. Servem como meio de pagamento digital sem a volatilidade de moedas como o Bitcoin. Mas o marco regulatório é frágil. A maior stablecoin, a Tether, é frequentemente criticada por falta de transparência sobre suas reservas.

Stablecoins podem sim ser a base para um novo sistema de pagamentos internacionais. Ter várias competindo entre si pode ser mais benéfico para a inovação do que uma moeda digital emitida pelo governo. Mas, para ganhar confiança e assumir esse papel, uma stablecoin precisa ser vista como tão segura quanto dólares depositados em um grande banco regulado. Isso exige mudanças regulatórias.

Essas mudanças já estão em discussão com propostas como o STABLE Act e o GENIUS Act. O Secretário Bessent apenas sinaliza o interesse da administração na formulação dessas regras. Hoje, as propostas limitam severamente o que uma stablecoin pode manter como reserva. A Tether, por exemplo, tem parte de suas reservas em ouro, o que teria que ser vendido sob essas regras.

É possível que, regulando fortemente as stablecoins, os EUA consigam desenvolver sistemas de pagamentos internacionais que substituam o SWIFT com o tempo. Nesse cenário, as stablecoins assumiriam o papel que hoje é desempenhado pelos grandes bancos de compensação da rede SWIFT. Isso manteria o dólar como peça central nos pagamentos globais, sem que o Fed precise emitir sua própria moeda digital – o que vem gerando preocupações.

Nada disso significa que os bancos seriam substituídos pelas stablecoins. A verdadeira utilidade dessa tecnologia está em reduzir custos de transação e riscos de centralização. Os consumidores continuarão precisando dos outros serviços que os bancos oferecem. Assim, essa tecnologia parece ter mais valor no atacado do que no varejo.

E quanto ao dólar como moeda de reserva?

A demanda por dólares para transações é diferente da demanda por ele como reserva de valor. Depois que uma transação é concluída, quem recebe o pagamento precisa decidir como manter esse dinheiro. As características do dólar descritas acima não mudam muito com o formato técnico do pagamento. Mas o desejo de mantê-lo como reserva depende da estabilidade e previsibilidade das políticas econômicas dos EUA e da força do Estado de Direito que protege os investidores.

Se for verdade que o dólar tende a se valorizar demais por ser tão desejado, como os EUA podem mitigar esse risco? Nos anos 1980, o governo Reagan reuniu autoridades dos países do G7 em um encontro que resultou no Acordo Plaza. Ali foi combinada uma ação coordenada para desvalorizar o dólar frente aos principais parceiros comerciais.

Hoje, um acordo assim não funcionaria. Os maiores detentores de reservas estrangeiras não são aliados dos EUA, mas concorrentes e adversários. A China tem mais dólares do que o Japão. A Índia tem mais do que o Banco Central Europeu. Será que o presidente Trump conseguiria convencer a Arábia Saudita a abandonar o vínculo com o dólar e vender seus títulos americanos?

Essa realidade deu origem à proposta incômoda, defendida por Stephen Miran, de um possível “Acordo Mar-a-Lago”. Em resumo, os EUA reuniriam seus aliados e sugeririam que a continuidade das garantias de segurança americanas dependeria do apoio deles à desvalorização do dólar. Isso poderia ser feito com a compra de títulos mais longos (em vez de papéis do Tesouro de curto prazo), o que aumentaria a demanda por esses papéis e reduziria as taxas de juros de longo prazo. Outra sugestão seria introduzir um imposto sobre transações ou sobre os juros pagos a estrangeiros que compram títulos americanos, o que, na prática, reduziria o rendimento líquido e a demanda por dólares.

A administração Trump já demonstrou disposição em misturar economia e segurança em temas como tarifas e comércio. É possível que esse padrão se estenda às políticas financeiras. Mas tentar reduzir a demanda por títulos dos EUA é uma estratégia arriscada num momento de grande déficit fiscal e com cortes de impostos em discussão. Há uma contradição evidente entre essas ideias. Isso eleva os riscos econômicos.

Os verdadeiros riscos para o dólar não vêm de fora. Eles não estão relacionados a outras moedas se tornarem mais atraentes. Os BRICS propõem criar uma nova moeda, sem histórico e apoiada por países que nem sequer permitem a conversibilidade total de suas próprias moedas. Isso é distração, não ameaça real. Os riscos verdadeiros são internos e vêm do abandono da coerência econômica que fez do dólar a moeda preferida do mundo.