Duplo, duplo trabalho e problema

Duplo, duplo trabalho e problema

Hoje em dia, é raro ouvir alguém falar sobre o mercado sem se perguntar se as ações nos EUA estão em uma bolha. Os movimentos recentes dos mercados mostram o desconforto dos investidores, mesmo com o bom desempenho. Isso acontece apesar dos sinais mistos da economia e de um nível de incerteza política que normalmente desestimularia decisões de longo prazo. Acreditamos que é ingênuo ignorar as valuations, mas também é um erro entrar em pânico.

Estamos em uma bolha?

Alan Greenspan disse certa vez que só dá para reconhecer uma bolha depois que ela estoura. Ele estava certo. Os mercados são guiados por expectativas de lucros no futuro, e só depois sabemos se essas expectativas eram exageradas. Isso não ajuda muito quem precisa investir agora.

A grande pergunta é: como os investidores podem formar expectativas sobre o crescimento futuro dos lucros? Como construir uma visão sólida em torno da inteligência artificial (IA)? Isso nos leva a várias questões relacionadas:

  1. A IA é uma tecnologia promissora, com potencial de transformar a lucratividade em muitos setores.
  2. Se aumentar a produtividade, pode acelerar o crescimento da economia.
  3. Ainda não sabemos qual será o tamanho real desses benefícios.
  4. Por isso, também não sabemos quanto as empresas de IA conseguirão cobrar, de forma sustentável, pelos seus serviços.
  5. E como ainda não sabemos se essas empresas terão lucro, também não sabemos se os investimentos bilionários em pesquisa e centros de dados vão realmente valer a pena.

Esse nível de incerteza tem todos os ingredientes para criar uma bolha. Histórias otimistas sobre o potencial de crescimento encantam o mercado. As dúvidas sobre lucros no longo prazo perdem espaço quando muitos querem aproveitar os ganhos de curto prazo. Quanto mais gente entra com medo de ficar de fora de uma possível revolução, mais os preços se distanciam da realidade. Já chegamos nesse ponto? Talvez sim, talvez não. Vamos analisar.

IA, produtividade e crescimento econômico

As opiniões sobre o impacto da IA variam muito. De um lado, o economista e Nobel Daron Acemoglu diz que a IA está substituindo tarefas humanas, e não ajudando os trabalhadores. Isso diminuiria a demanda por mão de obra e aumentaria o PIB global em apenas 1% na próxima década.

Do outro lado, economistas como Tyler Cowen são mais otimistas. Segundo ele, mesmo que o PIB não cresça tanto, a IA está dando acesso a informação e habilidades que muita gente antes não tinha. Por exemplo, alguém em uma região rural pode receber orientações médicas de qualidade que nunca imaginou ter. No Reino Unido, alguém poderia receber conselhos úteis mais rápido do que o sistema público de saúde conseguiria oferecer.

Também há gestores vendendo sonhos. Um famoso gestor de ETFs dos EUA acredita que a IA fará o PIB crescer 7% ao ano, e que robotáxis vão gerar 10 trilhões de dólares até 2030 — o equivalente a um terço do PIB americano atual. Cuidado com quem oferece investimentos com “temas de IA”.

Já existe evidência concreta de que a IA está fazendo diferença na economia real, mesmo que ainda não apareça nos dados de produtividade. O uso da IA cresceu rapidamente, mas desacelerou nos últimos meses, porque muitos projetos não entregaram o esperado. Isso é normal: as empresas precisam de tempo para entender como usar bem a tecnologia.

Hoje, os maiores benefícios imediatos estão em setores com profissionais do conhecimento, como finanças e direito. Mas esses setores também têm o dever de proteger os interesses dos clientes. Por exemplo: quem seria o responsável se um robotáxi causasse um acidente? As leis precisam mudar para permitir o uso mais amplo da IA, e os governos precisam ver como a tecnologia funciona na prática antes de agir. Ou seja: depois do entusiasmo inicial, a adoção da IA deve ser lenta… até se tornar repentina.

O impacto maior da IA ainda está por vir

Os efeitos mais profundos da IA provavelmente só vão acontecer quando surgirem novos produtos e serviços baseados nela. A primeira fonte confiável de eletricidade surgiu em 1800. O telégrafo foi patenteado em 1837. A iluminação pública elétrica chegou no fim da década de 1870. Os motores elétricos confiáveis só se popularizaram no final do século XIX. Foram quase 100 anos.

Embora hoje a tecnologia avance mais rápido, não está claro se os investidores em IA entendem que o “aplicativo revolucionário” pode demorar até 5 anos para aparecer.

Lucro zero no longo prazo

Quem estuda microeconomia aprende que, em mercados com concorrência perfeita, os lucros tendem a zero no longo prazo. Ou seja, as empresas ganham apenas o suficiente para compensar o risco dos acionistas.

Isso acontece quando os produtos são muito parecidos e os custos são os mesmos. Não é comum, mas muitos produtos chegam perto disso. Não é à toa que o CEO da Alphabet, Sundar Pichai, disse à BBC que há “elementos de irracionalidade” no atual boom da IA.

A competição entre empresas de IA já acontece em vários setores: chips, centros de dados, energia, dados para treinar modelos — e até concorrência vinda da China, com apoio direto do governo.

É difícil imaginar que empresas que vendem produtos padronizados, como energia ou capacidade de computação, tenham lucros atrativos no longo prazo. O verdadeiro valor ficará com empresas que possuem algo único: patentes valiosas, serviços diferenciados ou uma marca confiável.

O enigma das valuations

Benjamin Graham dizia que misturar fórmulas precisas com suposições imprecisas pode justificar qualquer valor. E a IA é um terreno fértil para isso, já que não temos um histórico para usar como base.

Como no “boom” ferroviário dos anos 1840 ou na bolha da telefonia nos anos 1990, a IA exige investimentos enormes antes de gerar receita — e ainda não sabemos quanto essa receita vai valer para os consumidores. Mas, diferente da bolha “ponto com” dos anos 1990, hoje quem lidera os investimentos em IA são empresas com muito caixa. Isso significa que elas podem continuar investindo, mesmo que o mercado balance.

E isso complica as coisas: precisamos avaliar essas empresas de outro jeito. Por exemplo, nas últimas décadas, muitos ignoraram o indicador preço sobre valor patrimonial (price-to-book) porque as empresas de tecnologia quase não tinham ativos físicos. Mas agora, com grandes investimentos em infraestrutura, esse indicador talvez volte a fazer sentido. E como devemos depreciar esses ativos?

Uma análise que li recentemente afirma que as valuations atuais do mercado fariam sentido se, daqui a alguns anos, houver 300 milhões de usuários pagantes de IA no mundo, pagando US$ 100 por mês. Isso não é impossível. Mas, para chegar lá, as empresas precisam testar a confiabilidade dos serviços e ajustar seus processos. Isso também sugere que muitos clientes não estariam dispostos a trocar por uma versão chinesa a US$ 25 por mês.

Um mercado difícil para investir

Quanto mais as valuations sobem, menor a margem de erro: um mercado ascendente significa risco aumentando. E o mais preocupante é que, à medida que as grandes empresas de tecnologia ocupam uma fatia maior do mercado, elas também passam a representar uma parte maior das carteiras dos investidores comuns. Se o mercado cair, isso pode afetar diretamente o patrimônio das famílias — e não só as empresas focadas em IA.

Nem tão bom, nem tão ruim

Até aqui, questionamos as expectativas mais otimistas. Mas também seria ingênuo achar que, se metade das promessas da IA se concretizarem, o crescimento dos lucros não justificaria parte do entusiasmo atual. Da mesma forma, exagerar dizendo que tudo está inflado demais também seria um erro. Indicadores como preço/lucro podem parecer altos, mas menos absurdos quando comparados ao crescimento real dos lucros nos últimos tempos.

À medida que o mercado sobe, faz sentido reduzir riscos com cuidado. Quem tentar entrar no “boom da IA” comprando ações “baratas”, como as de empresas elétricas que fornecem energia para data centers, pode ter mais dificuldade para se recuperar numa queda, em comparação com quem investe em empresas com propriedade intelectual relevante. Isso pode parecer estranho, já que as elétricas são consideradas investimentos mais defensivos.

Como em outras bolhas de tecnologia, muitos investidores podem perder dinheiro. Mas essas bolhas também deixaram uma infraestrutura valiosa para consumidores e empresas. Isso resultou em ganhos duradouros de produtividade e crescimento. No longo prazo, como dizia Keynes, todos estaremos mortos. Mas ele também escreveu que, graças ao progresso tecnológico, em 2030 as pessoas nos países ricos poderiam trabalhar apenas 15 horas por semana para suprir suas necessidades. Será que ele estava certo nas duas previsões?